Já era quase um adulto quando conheci abobrinha. Foi há muitos anos, quando comecei a morar sozinho e tinha que almoçar em pensão se quisesse fugir do fiel miojo que dividia comigo as alegrias e tristezas da minha nova vida de jovem “independente”. Pois é, era na “Pensão da Tia Cema” que eu parava depois de sair do colégio atraído pelo cartaz que oferecia uma carne, uma salada, e o melhor: arroz, feijão e farofa à vontade. Tudo isso por um irresistível baixo custo.
Pois bem, subia eu então quase todos os dias por aquela apertada e comprida escadinha para compartilhar com a plebe um lugar exagerado na simplicidade, composto por mesas compridas cobertas por um plástico xadrez vermelho (igual aos de encapar livro no primário) e garrafas gordas de água. Pagava na entrada em troca de uma ficha para pegar a fila que iria matar a minha fome internacionalmente respeitada. Talvez tenha sido um dos primeiros laboratórios que fiz como ator, mesmo que de forma involuntária, pois todos ali dentro eram personagens interessantes. Inclusive eu, sujeito que não via a hora da fila andar e alcançar a bandeja encardida pelo farto uso com direito a um prato, talheres e a uma tigela de aço inox.
Eu e meus desafortunados companheiros de perrengue nos postávamos em forma de bandejão e sorríamos de acordo com a aproximação das “tias” que faziam os pratos. Esticávamos os braços para que elas pudessem nos encher de alegria colocando o arroz, o feijão e a farofa até pedirmos pra parar. O meu problema, como o de alguns outros, e que eu nunca soube como fazê-lo. Vai ser olhudo assim lá longe!! Gostava de ver o feijão transbordando, a farofa formando aquele castelo de areia, e a tia perguntando-exclamando indignada: “Tá bom não, menino?? Deus me livre e guarde!!”. Eu só me dava por satisfeito quando começava a sentir o braço tremer pelo esforço ao sustentar aquele absurdo que eu insistia em chamar de refeição.
Como nem tudo são flores, as tias tinham uma forma de se vingar da minha gula implacável. Ao servir a carne (quase sempre um ensopado) e a salada (regada a vinagre pra disfarçar o que fosse), muitas vezes elas colocavam pra mim somente 'a conta' de comida, o que me fazia sentir desprivilegiado em relação ao faminto da frente. Eu mandava aquela 'choradinha', mas nem sempre funcionava.
Com o passar do tempo me tornei conhecido no recinto, fazendo assim uma certa amizade com as tias que sorriam ao verem me gabar daquele prato regado. Muita coisa que não imaginava comer quando moleque me fazia lamber os beiços lá na “Tia Cema”. Sentava ao lado de tudo quanto é tipo de gente, uma peãozada de fazer inveja à construção civil e a novela “Pantanal”. Aprendi técnicas fundamentais de sobrevivência nessa concorrida selva de pedra. Principalmente no que se refere ao manuseio e aplicação da argamassa feita com feijão e farinha. Aprendi como abraçar um prato e protegê-lo com toda a gana. Aprendi também a técnica do ancinho que consiste em “alargar” os dentes do garfo com a faca a fim de potencializar a capacidade de escavação da obra em questão.
Até o dia em que conheci a abobrinha. De cara não entendi por que gritavam pra cozinha pedindo abobrinha se o quadro negro lá embaixo ao pé da porta de entrada não citava a iguaria. Depois é que percebi se tratar da mais nova ajudante apelidada carinhosamente pelas tias pelo seu jeito meio mole, meio desconjuntada, meio nada demais de frente ou de costas. Mas uma coisa não se podia negar: como era cheirosa. Ela passou por mim um dia e mandei logo: “Nossa, que gostosura!”. A leguminosa olhou pra trás, deu um sorrisinho e respondeu: "Imagine temperada...!". Foi aí que o paio subiu, o azeite jorrou e a batata dela começou a assar. Engoli o famoso bate-entope em recorde jamais visto e parti pro banheiro, que coincidentemente, era dentro da cozinha. Ao entrar já a encontrei toda aberta, pronta para receber o bacon que aquela altura começava a virar torresmo. Então comi! Comi com gosto!! Me senti uma espécie de lagarta pondo seus ovos na horta. Nem os gritos que procuravam abobrinha me impediram de plantar a mandioca no meio daquele ambiente fétido que também guardava o estoque e os segredos daquela boa culinária.
Nunca mais nenhum cardápio me trouxe tanta satisfação. Anos depois a pensão fechou. Dela levei estórias e algumas baratinhas francesas de recordação. Tudo bem que graças a esse episódio não posso mais entrar em restaurantes “self-service” que tenham abobrinha no menu, pois só de sentir o cheiro fico super excitado e posso ter sérios problemas com isso, principalmente com quem segue na minha frente na fila. Mas o mais importante é que essa experiência me abriu os olhos para uma centena de possibilidades gastronômicas. Moqueca de Piranha, por exemplo. Mas vamos deixar essa pra um outro dia.